O ano de 2020 vai se encerrando.
Um ano difícil, extenuante. Perdas de pessoas queridas, dificuldades diversas,
angústia, medo. Não seria exagero se tomássemos tais elementos como destaques
para nossa retrospectiva. No entanto, é com outra chave que gostaria de
encerrar o ano nesta coluna. Pretendo falar de esperança. Mas quero fugir do
lugar comum dos votos de felicidade, das frases de cartão, dos belos
pensamentos que invadirão em breve nossas caixas de mensagens.
O final do ano é tempo propício
para projeções. Traçamos planos, fazemos uma lista de coisas para o ano
seguinte, prometemos mudanças. Está perfeito. O desafio é saber em que medida
tais projetos se configuram como buscas reais ou meras fantasias. Além disso,
há outro elemento mais decisivo em nosso tempo: o que esperar de um ano sobre o
qual não conseguimos sequer ter ideia de como será?
Vou recuar um pouco. Por que
temos esperança? Por que gastamos tanta energia com um futuro imaginado? Difícil
dizer. Todos os seres transitam de um estado a outro, mudam com o tempo. Não há
estagnação na natureza. Mas o bicho humano quer mais. Celso Viáfora sintetizou
belamente isso em sua canção “Água do mar”: “Eu não quero pouco: / só quero
tudo, / pelo tempo todo,/ pra todo mundo”. A esse anseio profundo Adélia Prado
chamou de “fome”. Um sentimento dúbio, porque ao mesmo tempo que queremos
saciá-la, de alguma forma desejamos que ela volte, para novamente buscar o
alimento. Seus versos são certeiros: “Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.”. Nós desejamos o desejo...
O filósofo holandês Baruch
Spinoza (1632-1677) dedicou-se ao tema dos afetos de forma rigorosa e demorada.
Pontuo aqui apenas um ou outro elemento. De acordo com Spinoza, somos
essencialmente desejo. Esse “desejo”, porém, não é o mero anseio por algo ou
alguém, mas sim um impulso constitutivo de nosso ser para sua conservação ou crescimento.
Como não somos isolados da natureza, e sim parte dela, seguimos sua ordem geral:
um esforço permanente de preservação, para aumentar nossa potência de agir e de
ser. Para encurtar o caminho: quando esse impulso é atendido, tornamo-nos mais
alegres, mais potentes; quando não, é a tristeza que nos toma.
Isso tudo para dizer que a
esperança é uma forma de alegria, só que antecipada na imaginação. É um desejo
de alegria que está por vir. Por isso é frágil. O aumento de nossa potência de
agir ainda não aconteceu, ele está projetado no futuro. Nesse sentido, se for reduzida
à mera espera passiva, a um estado de expectativa pura e simples, a esperança
se transforma em lenitivo, em alívio apaziguador do presente por meio de uma
projeção imaginária. Ficamos parados à espera de um milagre. Porém, se
transformada em postura ativa a esperança nos potencializa, nos motiva a abrir
caminhos. Colocamo-nos em movimento. Para dar um exemplo pessoal numa lembrança
que me vem, foi o que, intuitivamente, acabei fazendo no dia em que, com onze
anos, disse à minha mãe, na volta da escolinha rural, que queria continuar os
estudos, ir para a cidade, conhecer o mundo.
Mas é preciso cautela. Eu poderia
facilmente incorrer numa narrativa falsa da história para dar um tom solene:
“Naquele momento tracei um novo rumo para a família! ”. Não é verdade. Por dois
motivos básicos: primeiro, não temos o poder de causar as coisas apenas por
antecipá-las na mente. Participamos de processos, engajamo-nos em algo,
dedicamo-nos a um objetivo. Portanto, são ações – e não a mera vontade – que
fazem com que as coisas aconteçam ou não. O segundo motivo está intimamente
ligado ao primeiro: não estamos isolados. Ao chegar no mundo o encontramos permeado
de encontros e desencontros e, como quem sobe em um ônibus no centro da cidade,
passamos a compor aquele complexo de relações. De tal maneira que uma decisão –
por exemplo, a de uma criança que decide continuar seus estudos – não nasce do
nada; é fruto de motivações que ela sequer imagina e que, na sequência, será
incluída em uma trama altamente complexa de outras expectativas dos pais,
família, vizinhos, a sociedade toda. Sem falar nas questões materiais, nas
implicações concretas de uma determinada decisão, dinheiro, emprego etc.
O que quero com esse raciocínio
tão complicado? Certamente não é cansar o leitor, mas sim lembrá-lo de que: 1)
por mais belos que sejam seus anseios, somente o fato de projetá-los na mente não
indica que se realizarão; 2) na tentativa de realizar seus objetivos para o
próximo ano, precisará considerar a trama de relações, situações,
circunstâncias e fatores diversos que não dependem de você.
Mas então não há sentido em ter
esperança? Não diria isso. Diria, recordando uma vez mais Spinoza, que ela é um
sentimento frágil, pois a incerteza também comparece no jogo. Onde há esperança
há também o medo. Esperança é desejo de realizar, conquistar algo, ser alguma
coisa. O medo é o seu reverso, pois não é certo que realizaremos,
conquistaremos ou seremos o que planejamos.
Uma posição mais sábia, portanto,
seria aquela que reveste a esperança de uma profunda reflexão crítica.
Primeiramente, buscar entender o que desejamos e porque desejamos. Ter a
consciência das motivações de nossa esperança. Concomitantemente, avaliar as
reais condições de cumprimento daquilo para o qual nossa esperança aponta. É
preciso pensar o que é necessário de esforço meu, em que medida depende não só
de mim, mas de outros; de que forma é viável ou não; e, o mais importante de
tudo, se é mesmo um bem aquilo que anseio. Numa palavra, conhecer melhor minhas
próprias ações e também a trama em que estou inserido, que é sempre mais
complexa do que eu consigo compreender.
Tudo isso não garante em nada uma
maior eficiência no cumprimento de nossos sonhos. Só haveria receita de sucesso
se o mundo respondesse ao nosso apelo ou se vivêssemos isolados. Posto que não
é assim, a única vantagem em revestir nossa esperança de reflexão crítica é
que, seja qual for o resultado, teremos avançado um pouco mais na capacidade de
orientar nossas ações e sentimentos, conhecer melhor quem somos, deixando de esperar,
passivamente, que o mundo e a vida nos sejam favoráveis.
Não há mal algum nas frases
feitas de virada de ano, nos desejos de coisas boas para quem está ao nosso
lado. Porém, é tudo ainda expressão do lado frágil da esperança. Voltando à
questão: o que esperar do próximo ano? Claro que devemos querer o melhor, mas o
decisivo mesmo se dá aqui e agora. Que venha 2021. Antes dele, porém, temos
ainda um pedaço de 2020 para viver. Façamos dele o melhor possível.
José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni
Fonte: Publicado em 18 de dezembro de 2020 no
Jornal Diário Tribuna no link: https://diariotribuna.com.br/?p=6718